... essa Oscar Freire de dentro de mim ...


A idéia foi mais uma súplica do que, de fato, um convite. É que passear na Oscar Freire numa quarta à tarde não é para qualquer um. Quer dizer, não é para qualquer mulher, apenas para as dondocas que desfilam em carros importados e sorriem suas caras de porcelana francesa, ou italiana. Ou para aquelas que trabalham com moda e estão em busca das tendências (ops, das novas propostas!), quiçá em busca de ser uma nova mulher. Ou nem tanto, talvez para aquelas que querem se encontrar mulher, apenas. E para este último caso, valeria um bom passeio, afinal, a última vez que caminhei sobre o novo calçamento da Oscar Freire foi por conta da “Cow Parade”, e para tirar fotografia de vaca na moda (sem duplo sentido, mas com uma boa dose de sarcasmo).

Deixamos o carro na Alameda Lorena, na rua mesmo. É que a Zona Azul, mesmo com 45% de inflação, estava muito mais em conta do que o estacionamento, qualquer um. Era inegável nosso comportamento adolescente na busca do desconhecido e, confesso, ter 15 anos aos 30 pode ser, de fato, divertido. Os olhos brilham de jeito diferente, e tudo parece ser novo. Pra gente era mesmo. É que trabalhar numa Faculdade de Educação Física não requer muita produção. Basta uma calça de briga ajeitada, meia, tênis e uma camisa ou blusa que combinem. A combinação é só para diferenciar alunos de professores, nada mais que isso, quando isso é possível de ser feito. Calça jeans, peça distante do meu armário, é roupa de luxo, a maior estica que os professores vestem em ocasiões especiais: dias de prova, reunião com o diretor, uma banca de trabalho acadêmico. E é claro, tudo isso deixa a Oscar Freire em outro plano, “com olhos felinos felizes e mãos de cetim”.

O luxo de uma iluminação planejada e de uma arquitetura moderna nos convidava a entrar em cada uma das lojas de alta costura. Todas com nomes de mulheres lindas e famosas que a gente nem sabia quem eram, pura ignorância. “Essa é a nossa única peça nacional, assinada pela Patrícia de Tal, todas as outras são italianas, de Milão”, disse a simpática vendedora olhando nossas roupas de baixa costura, sem proposta alguma. “Por que você não experimenta?” Fomos aos provadores e eu me senti invadindo um daqueles mundos proibidos, com placas luminosas gritando: isso não é pra você. Provei, provamos! E um “Vixe, é a prestação do meu apartamento!” escapou da boca da minha prima. Isso foi suficiente para nos colocarmos de volta à realidade e tocarmos o projeto inicial de apenas olharmos, para depois irmos às compras em outro lugar, mais barato, com corte e tecidos parecidos, mas não tão confortáveis e perfeitos quanto aqueles. Ou, de outra feita, valeria um curso de corte e costura, e nós sairíamos em busca de propostas e de bons tecidos, em outros redutos da cidade.

De loja em loja, discutíamos esta idéia de que poderíamos ser nossa própria mão-de-obra e também discutíamos o fato de que sendo nossa própria mão-de-obra economizaríamos nos encargos da loja, iluminação, fachada e caimento assinados que se somam às roupas de grifes, porque, veja bem, “não é tão difícil juntar retalhos de tecido para fazer uma camiseta dessas”. Tá, o recorte da peça era mesmo interessante e, na dúvida de quanto ela custaria, recorremos ao vendedor, um moço magro, alto, de fina estampa e de trejeito fino, inclusive. Ui. De repente o rapaz se colocou atrás da manequim - destas que imitam com certa perfeição o pescoço, ombros, colo e peitos de uma mulher - e avançou sensualmente suas mãos sobre ela, na altura do pescoço, deslizando-as simetricamente sobre seus ombros, com a pressão de quem sabe exatamente o que está fazendo quando toca um corpo de alguém pela primeira vez. A sede da primeira vez fez com que ele não desistisse. Continuou sua jornada de descobertas ao escorregar sorrateiramente suas mãos até os peitos da boneca, uma em cada peito, já quase para abraçá-la (e beijá-la? no pescoço?), mas não lhe parecia suficiente. Então ele tentou mais uma vez, ainda num gesto contínuo e inseparável da manequim, devolveu suas mãos (e que mãos!) para as costas da moçoila, descendo-as até a cintura, em sincronia, como se os dedos pudessem bailar suavemente sobre a tez que não existia, era só um pedaço de plástico que, enfim, lhe fora suficiente. Ufa! “Setecentos reais”, disse-nos mostrando seu sorriso bem cuidado, eu com o queixo caído e minha prima revirando os olhinhos por conta de mãos tão decididas. Ui, como é inusitado um passeio pela Oscar Freire.

De volta à calçada e rumo a outras vitrines, um casal de gays levava um cachorrinho despreocupado para passear. O bichinho parou, cheirou, deu meia volta, analisou o terreno, se agachou nas patas traseiras e fez o que tinha vontade de fazer. Sem pressa, como se o mundo pudesse parar. E na Oscar Freire o mundo pode mesmo parar. Educadamente, o moço que não estava com a guia recolheu as fezes num saco plástico que fez de luvas. O outro, depois de ter contemplado a mercadoria do filhote, aplaudiu: “ah, você fez cocozinho, né?” como se ele próprio abanasse o rabo. Ui, como é inusitado um passeio pela Oscar Freire.


Mas o charme mesmo foi o John, de outra loja, que entramos meio a esmo, um pouco murchas. Ele nos conquistou logo de cara. E a única blusinha que escolhi, puxando-a da arara, transformou-se logo em quatro. Como uma lady, carreguei todas para o provador de luxo, entapetado, iluminado. Eu já estava achando muito divertido brincar de ser dondoca quando o John nos deu uma festa de presente, ao nos estender uma passarela. Então eu e minha prima, modelos de nós mesmas, nos encontramos mulher. Entre um desfile e outro das roupas tipo “olha essa que bonita, ela tem várias propostas” que ele ia trazendo, e que nós duas vestíamos e desvestíamos, desvairadamente, John nos serviu capuccino (eu abusei e tomei logo dois, mas só porque eu achei bem legal esse negócio de ser madame). Ele chegou a pensar em fazer Educação Física depois que perdeu dez quilos na academia, mas disse que o negócio dele é Comunicação. Nós fomos contando como é a vida na universidade, quem eram nossos alunos, as peculiaridades da coisa.

Faceiro, John me olha com o olhar tipo “não disse que esta blusa ia ficar muito bem em você?” e sai em busca de uma calça jeans. Eu relutei, porque eu não gosto de calça jeans, mas ele suplicou, “veste, só pra você ver”. Vesti, com a combinação de blusa que ele tinha sugerido. “Espera, vou buscar um salto e um colar pra você”. Desfilei-os como uma deusa, pois já havia virado hábito, e parei frente ao espelho um tanto pensativa. Então ele me diz entusiasmado: “nossa, você não pode se esconder debaixo das roupas, você é um mulherão”. Soltei os cabelos para mais um desfile, mas o que eu queria dizer mesmo era “tá bom, você venceu, pode embrulhar tudo”. Ele entendeu. E duas horas depois de termos entrado, John nos devolveu à Oscar Freire. Duas novas propostas. Eu com oito peças de roupa (incluída a calça jeans) e a prima com cinco. Uma heresia comprar roupas na Oscar Freire. Um frenesi.

“Que venha essa nova mulher de dentro de mim,
com olhos felinos felizes e mãos de cetim
E venha sem medo das sombras, que rondam o meu coração,
e ponha nos sonhos dos homens
A sede voraz, da paixão
Que venha de dentro de mim, ou de onde vier,
com toda malícia e segredos que eu não souber
Que tenha o cio das onças e lute com todas as forças,
conquiste o direito de ser uma nova mulher.“
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